O
Quilombo Literário: um grupo de leituras!
Paulo
Luiz Rodrigues
Inicialmente,
este texto foi escrito durante a pandemia, em janeiro de 2021, para publicação
nas páginas da Revista Africanidades. Não foi concluído a tempo.
A
ideia era escrever sobre os livros lidos pelo grupo até aquele momento e sobre
outras atividades que participamos, além de falar um pouco sobre o nosso grupo.
Agora,
em setembro de 2023, retomamos a escrita desse texto, acrescentando atividades
realizadas a partir da pandemia.
O
Quilombo Literário é um grupo de leituras, cujo coordenador é Paulo Rodrigues,
gaúcho, da cidade de Porto Alegre - RS, e está em Fortaleza a cerca de 10 anos; e
Paulo Garcia, o vice coordenador, paulista, da cidade de Barretos - SP, e está em
Fortaleza a cerca de 8 anos.
Depois
de muitas conversas por e-mail, formatamos o Quilombo Literário e convidamos algumas
pessoas para o nosso primeiro encontro, onde trabalhamos a obra “Na
Minha Pele” do autor Lázaro Ramos, no dia 09 de junho de 2018.
O
primeiro convite informava, logo nas primeiras linhas, que era pessoal e
intransferível, e foi elaborado de forma a explicar ao convidado quais eram os
objetivos do grupo que se formava: o Quilombo Literário pretende estimular
entre os participantes o gosto pela leitura de livros de autores negros;
melhorar a capacidade de interpretar, discutir e apresentar as ideias;
aprimorar a escrita de textos voltados à questão negra. Para participar do
grupo é preciso receber convite via e-mail, enviado pela coordenação.
Hoje isso mudou um pouco: criamos um grupo no WhatsApp e os convites são
disponibilizados nessa plataforma. Mas os objetivos permanecem os mesmos.
Alguns colegas que participavam inicialmente do grupo optaram por não se
cadastrarem no grupo de WhatsApp, então não têm mais recebido as informações
sobre atividades do Quilombo!
Durante a nossa apresentação no XI Congresso Internacional Artefatos da
Cultura, uma das coisas que chamou a atenção do mediador foi o fato de que trazíamos
a leitura para o centro da comunidade negra da diáspora, pois, dizia o
mediador, uma das formas que o colonizador encontrou para subjugar os negros
escravizados foi negar a eles a leitura e a escrita. E agora, continuava o
mediador, aparece um grupo, de fora dos meios acadêmicos, e se propõe estimular
a leitura de autores negros e aprimorar a escrita de pessoas negras.
Desde o início de nossas conversas para a formação do grupo, estas eram as
principais preocupações: fazer com que as pessoas conversassem livres e soltas
sobre o seu entendimento da leitura feita, não havendo o certo ou o errado,
simplesmente a pessoa sentiu dessa forma a leitura; melhorar o entendimento das
palavras lidas, aqui pensávamos na melhora argumentativa das pessoas; e a
escrita, pois acreditamos que, ao ler, a pessoa passa a escrever com mais
qualidade; além de trazermos, e isso sempre foi uma preocupação latente, livros de
autores negros de várias nacionalidades, para que começássemos a conhecer essa
literatura um tanto desconhecida aqui no nosso país.
Conseguimos levar cerca de 8 pessoas ao primeiro encontro, de um total
de 17 convidadas via e-mail. Ainda tivemos uma participante de Araraquara - SP
que enviou sua contribuição por e-mail, a qual lemos durante o encontro. Uma
das conclusões a que chegamos foi que Lázaro Ramos analisa de forma elegante e
simples temas complexos, o que torna a leitura gostosa e tranquila. Observamos
também que o autor trata: das vantagens que a branquitude tem em relação a
negritude na sociedade; relacionamentos inter-raciais; cotas; criação de filhos
negros num mundo de brancos; mídia; invisibilidade do negro; autoestima;
identidade negra; entre outros temas. Destacamos, ainda, nas páginas 82 e 83 do
livro, ideia discutida pelo autor de que a mídia tem um poder tão forte que
mudanças na mídia correspondem a mudanças na sociedade. Este pensamento do
autor tem conexão bem forte com a pensadora negra Ângela Davis, que disse: “quando
a mulher negra se move, toda a sociedade se movimenta!”.
Nosso grupo não tem a pretensão de discutir, como dizia o mediador no XI
Congresso, a raiz do pensamento dos autores, mas de trazer à luz ideias
relevantes apresentadas por eles e, então, interligá-las com o dia a dia, com a
realidade de cada leitor.
Enquanto criávamos o Quilombo Literário, nos perguntávamos o que seria
mais importante para os nossos leitores: o local, os livros, o acesso ao prédio
ou a beleza interior prédio. Esta era
uma questão importante para nós porque não tínhamos local para nos reunirmos.
Concluímos que o mais importante, num processo como o que estávamos iniciando,
era o leitor. Ele é o elo mais importante num processo de incentivo à leitura.
Se ele se encantar com a leitura, irá incentivar para que o projeto dê passos
maiores, irá propor novos autores para leitura. Concluímos que ler boas obras é
ajudar o cérebro a criar conexões, desenvolvendo-o. Ler é se adaptar a olhar os
fatos por outros ângulos, é viajar sem sair do lugar, é expandir o vocabulário
e a capacidade de escrita, é melhorar a dicção e a oratória.
A dinâmica utilizada no grupo é a de que cada convidado leia a obra
indicada e, no dia do encontro, que é um por semestre, cada participante possa abordar
os aspectos que mais lhe chamaram atenção durante a leitura e, muitas vezes,
partindo de algum fato narrado pelo autor, o participante junte memórias de
algum momento de sua própria vida, e as compartilhe com o grupo. Acreditamos
que isso é um grande diferencial de nosso grupo, pois conseguimos juntar ficção
e realidade nas nossas narrativas. Quando o Lázaro Ramos narrava que a mãe dele
foi empregada doméstica e que a patroa dela não permitia que ela almoçasse
junto à mesa, nesse momento, o grupo se deu conta de que quase todos os
participantes também tiveram vários parentes que tinham a mesma profissão:
empregada doméstica! Aqui se falou das humilhações que estas profissionais
sofrem nos ambientes em que exercem suas atividades, e das limitações que
sofrem quanto a horários de trabalho, dias de folga, e abusos de toda ordem. Quando alguém cita
que alguma situação da narrativa do autor foi boa ou ruim, outro dos
participantes, partindo dessa situação levantada, pode trazer alguma memória
vivida! E isto é instantâneo! Este é um momento em que se pode dizer que
a obra entrou em conexão com o leitor, fazendo aflorar situações que estavam
guardadas! Aqui reside a força do Quilombo Literário: fundir ficção com realidade!
Como estamos trabalhando com memória vivida, não há por que discutir se
a interpretação que algum participante dê à narrativa do autor esteja certa ou
errada. Não há um ponto de vista mais correto que outro. Partimos do princípio
de que sempre podemos aprender alguma coisa com os outros! Muitas vezes, outro
leitor pode nos alertar para algum aspecto da narrativa do autor que passamos
despercebidos. Nosso grupo é formado por pessoas de várias profissões:
estudantes e professores em sua maioria, mas também comerciantes, empregadas
domésticas, e profissionais liberais. Temos o que chamamos de diversidade de
saberes! Então, o que é visível para uns, não o é para outros!
No nosso segundo encontro, no segundo semestre de 2018, dia 15 de
dezembro, trabalhamos a obra “Olhos D’Água” da autora Conceição
Evaristo. É uma obra com histórias fortes, onde a autora expõe a vida de
personagens, em sua maioria negros, que vivem nas favelas, país afora! A autora
apresenta textos curtos onde mostra a fragilidade da vida. São denúncias e
celebrações da vida! Afirmações e negações! Mas acima de tudo, mostra a
capacidade da mulher negra de reinventar nesse ambiente para sobrevivência
própria e dos seus familiares. Em muitos textos, a autora mostra as várias
formas da mulher negra se apresentar ao mundo. Vítima de contextos
desfavoráveis, baixa escolaridade e, por consequência, precariedade no emprego!
Um retrato de vida que muitos sabem que existe, mas poucos querem encontrar uma
solução!
Muitas pessoas do nosso grupo, ao avaliarem a obra de Conceição
Evaristo, disseram que não conseguiram ler mais de um conto por vez, tamanho
foi o impacto das histórias narradas. São textos fortes sobre mulheres negras
de periferia, onde a autora convida o leitor(a) a escrever junto o texto, isto
é, as ideias não são descritas em sua íntegra, mas dão a sugerir, ficam no ar,
deixando que o leitor construa junto o que está sendo narrado. São textos
realistas e crus. Outra discussão no grupo foi que talvez, por seus textos
realistas e crus, falando de uma realidade nua e crua, a autora tenha perdido
muitos votos para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras na última
eleição. Fazer o quê? Melhor ser ela mesma a escrever para ganhar votos!
Em todos os nossos encontros há intervalo para o lanche. Preparamos uma
mesa separada da mesa de discussão, onde colocamos todas as contribuições.
Solicitamos que cada participante leve alguma contribuição para o lanche que
será servido a todos os presentes. Essa contribuição poderá ser na forma de
bolo, bolacha, refrigerante, suco, ou uma fruta. Entendemos que a importância
do lanche é mostrar aos presentes que houve uma preparação para recepcioná-los,
para que se sintam bem, além de ser um momento de confraternização entre os
participantes!
Durante o intervalo, aproveitamos para conhecer melhor os participantes:
onde estuda, trabalha, de que bairro vem. São esses contatos que vão criando
laços entre o grupo. Muitas vezes, se conversa sobre algum fato relevante
aparecido na mídia nos dias anteriores sobre a questão negra. Também se
conversa sobre peças de teatro que vão estrear na cidade ou em alguma capital
do país. Livros que foram lançados ou estão em pré-lançamento. Esse é um
momento em que muitas informações sobre o que está acontecendo em relação à
questão negra são repassadas.
Em nosso terceiro encontro, no primeiro semestre de 2019, dia 15
de junho, trabalhamos a obra “Eu Sei Por Que o Pássaro Canta na Gaiola”,
da autora Maya Angelou. A autora narra fragmentos de histórias ocorridas em
algumas cidades dos Estados Unidos por onde os personagens transitam. Muitos
desses fragmentos do livro nos puxam para a vida real. Logo no início da
narração, a autora descreve toda uma situação de estupro infantil. Percebeu-se
que depois de descoberto o ato ilícito todas as desculpas apresentadas para
justificar o ato são semelhantes às apresentadas na vida real. Este foi um
momento em que o grupo não pôde deixar de comparar ficção e realidade, além de se
revoltar com esses casos!
Outro fragmento que levou o grupo a comparar ficção e realidade foi
quando a autora narra a dúvida que a menina, que havia sido estuprada anos
antes, tem ao analisar o seu corpo: percebe que é desprovida de curvas maiores,
o que a levou a pensar que era lésbica. Conversando com a mãe sobre as
transformações do corpo de menina, não recebeu resposta que lhe tirasse a
dúvida. A permanência dessa dúvida
causou baixa autoestima na personagem.
O livro analisado no terceiro encontro abriu muitas frentes para
debates: além da dúvida de ser ou não lésbica, apresentava uma menina criada no
sul dos Estados Unidos, sofrendo os efeitos do machismo e da violência sexual.
Todos esses fatos, da ficção e da realidade, levaram o grupo a concluir que o
“modus operandi” é o mesmo tanto lá quanto aqui, o que levou o grupo a
acreditar que machismo, violência sexual, e os derivados da escravidão são os
mesmos, tanto lá quanto aqui!
O livro ainda mostra fragmentos do caso de um dentista que tem por
princípio não atender negros; a questão do primeiro emprego da adolescente que
demora para dar certo porque as empresas dificultam de todas as formas a
contração de negros. Quando o grupo compara esses fragmentos da ficção com a
vida real, constata que muitas empresas dificultam a contratação de negros,
mas, em tempos de crise, os negros são os primeiros a serem demitidos! Na
realidade, há dificuldade para ser admitido, mas há facilidade para ser
demitido! Seria isso o tal racismo estrutural?
Nosso terceiro encontro foi pesado porque tratou de assuntos pesados e
reais. Ao final do encontro, se destacou, tal qual o mediador do XI Congresso
Internacional Artefatos da Cultura também o fez, a importância de espaços de
discussão sobre a questão negra igual a esse que o Quilombo Literário
disponibiliza. Destacou-se que, muitas vezes, os negros enfrentam lutas
variadas sozinhos, não tendo o apoio de outros negros para dividirem o fardo
pesado do racismo cotidiano que se abate, ora velado, ora explícito, sobre
eles. Precisamos que mais pessoas participem desses encontros e que tragam suas
experiências de vida para compartilhar com os presentes!
O grupo concluiu a análise da obra perguntando o porquê do título do
livro. Talvez a autora quisesse dar a ideia de libertação, pois, os vários
fragmentos discutidos na narração levam à liberdade: liberdade de pensamento,
de agir, de entendimento dos fatos, consciência antirracista, vontade de
escrever e de esperança em dias melhores. Então, o pássaro, mesmo preso na
gaiola, canta por acreditar que a liberdade ainda virá um dia!
Em todos os nossos encontros há uma preocupação com o bem-estar de todos
os participantes. Cuidamos para iniciar e terminar no horário, de modo a não
prejudicar o retorno dos que moram mais distante. Antes do início do encontro,
preparamos todos os detalhes da sala, para que os participantes cheguem e
percebam que eles são importantes, que alguém se preocupou com o bem-estar
deles. Nosso grupo distribui afetividades, por isso encontros presenciais são
tão importantes para nós! E ainda há o registro fotográfico de vários momentos
do encontro. Procuramos fazer o registro escrito e fotográfico de cada
encontro, de modo que o futuro exponha, a quem se interessar por esse assunto,
a nossa tentativa de contribuir com a real emancipação do negro!
Em nosso quarto encontro, no segundo semestre de 2019, dia 19 de
outubro, trabalhamos a obra “Não Vou Mais Lavar os Pratos” da autora
Cristiane Sobral. Esse encontro iniciou com a fala do Coordenador lembrando as
regras e objetivos do grupo: proporcionar leitura e análise de obras variadas
sobre a questão negra; a importância da escrita; e que não existe opinião certa
ou errada ao analisar uma obra.
A obra escolhida para análise traz poemas curtos, então, optou-se por
deixar que cada participante escolhesse um poema e fizesse a leitura e, após,
quem quisesse fazer algum comentário estava liberado para fazê-lo. Em muitos
poemas, a autora mesclava o ontem e o hoje. E nos comentários, após a leitura
dos poemas, se percebia que os problemas do negro de ontem continuam, com outra
roupagem, os mesmos do negro de hoje. Um colega pediu para ler o poema
“Faveiros”, após a leitura se fez comparações entre o poema da autora e a vida
real, lembrando de balas perdidas e da juventude negra que está sendo abatida
nas periferias.
A certa altura do nosso quarto encontro, começamos a perceber que muitas
histórias narradas nos poemas tinham relação com temas já tratados em obras
analisadas anteriormente por nós. A interdição do homem e mulher negros na
sociedade aparece em todas as obras analisadas. O que nos obriga a fazermos a
conexão entre elas.
Concluímos o quarto encontro, lendo em conjunto o poema título da obra
“Não Vou Mais Lavar os Pratos”. Após a leitura, se comentou que a sociedade
ainda cobra muito da mulher a realização do trabalho doméstico. Muitas vezes,
mesmo da mulher com atividade intelectual se cobra a limpeza e organização da casa,
fazendo com que ela, às vezes, tenha dúvidas se fará primeiro o trabalho
intelectual ou o doméstico. Esta situação é tão cruel, que faz com que algumas
mulheres pensem “o que alguém irá pensar, se chegar à minha casa e encontrar a
casa bagunçada?”. O grupo entendeu que
este poema era o grito de liberdade da mulher!
Nosso quinto encontro estava previsto para o primeiro semestre de 2020,
dia 04 de abril, para trabalharmos a obra “Um Defeito de Cor”, da autora Ana
Maria Gonçalves, porém, devido à pandemia, foi transferido sem data para a sua
realização. Quando chegou o segundo semestre, e só para cumprirmos a realização
de indicação para leitura de um livro por semestre, indicamos a obra “O Olho
Mais Azul” da autora Toni Morrison, também sem data para o encontro, pois a
pandemia não mostrava sinais de recuo! Ficamos, então, com dois livros
indicados para leitura esperando o fim da pandemia, aguardando para nos
encontrarmos pessoalmente para discutirmos as obras.
Na obra “Um Defeito de Cor”, temos a história do negro narrada pelo olhar
do negro. Então, é outro modo de narrativa da revolta dos malês, em Salvador; se
conhece melhor as pensões insalubres do início da formação da cidade do Rio de
Janeiro, onde os negros libertos viviam, depois de trabalharem nas calçadas da
cidade vendendo frutas, verduras, pães e doces, além de pequenos objetos. E
nessa nova narrativa feita pelo próprio negro se percebe que o negro consegue
sim ser um empreendedor!
Na obra “O Olho Mais Azul”, temos a narrativa do esmagamento da
autoestima de uma menina negra norte-americana. Uma menina que, ao ser
ridicularizada e rejeitada pelas outras coleguinhas na escola e perceber que
tudo de bom e belo estava reservado para as colegas de olhos azuis, decide que
quer ter olhos azuis também! Na trama há também discussão sobre raça, violência
doméstica e classe social.
Nos nossos encontros, além dos livros escolhidos para trabalharmos,
também ressaltamos a importância que grupos como o nosso têm no empoderamento
de negros e negras. Na maior parte das vezes, o racismo é velado, escamoteado,
então, é dentro de grupos como este que estamos construindo que podemos nos
fortalecer e, assim, levar adiante a luta antirracista! Em verdade, nesta luta
antirracista, nosso grupo pretende alcançar os corações e as mentes das
pessoas, para transformá-los!
Durante a pandemia, submetemos apresentação de trabalho no XI Congresso
Internacional Artefatos da Cultura, com apresentação virtual, na URCA
[Universidade Regional do Cariri – CE]. Nossa proposta, “Experiência de Um
Quilombo Literário em Fortaleza – CE: Literatura Negra e Afetos”, foi
aceita e foi apresentada no dia 02 de outubro de 2020.
Nossa apresentação se deu em dois momentos: inicialmente, o Coordenador
explicou os objetivos do nosso grupo, Quilombo Literário; que obras já havíamos
trabalhado; destacou, ainda, que o Quilombo Literário é um espaço onde negros
se encontram presencialmente para conversarem a partir da leitura do livro
indicado, e sobre assuntos que, em outros espaços, não permeiam livremente
temas sobre a questão negra. Também é um lugar onde amizades são fortalecidas!
Na sequência, o Vice Coordenador apresentou em “Power Point” várias
fotografias dos nossos encontros, fez comentários sobre as fotografias, e
afirmou que “é importante destacar que as vivências no Quilombo Literário têm
permitido a emersão de narrativas que muitas vezes são atravessadas por
questões inseridas no campo das relações etnicorraciais e que evidenciam os
impactos e as consequências do racismo no cotidiano dos seus integrantes. Para
além das situações dolorosas, o Quilombo Literário também se configura como um
espaço que privilegia a troca e o fortalecimento de afetos!”.
Depois da apresentação, durante a abertura para perguntas, explicávamos
que as fotografias foram escolhidas justamente para lembrar e marcar nossas
trocas de conhecimento e de afeto. Trocas que ao longo dos tempos foram
negadas, escamoteadas e, muitas vezes, apagadas do povo negro!
A apresentação do nosso trabalho chamou a atenção do mediador por ser o
único com objeto de estudo fora da academia. Todos os outros trabalhos que se apresentaram
(nosso grupo temático reuniu onze grupos com trabalhos propostos sobre
literatura), eram de estudantes universitários apresentando pedaços de suas
teses para mestrado ou doutorado! O mediador ficou encantado que, apesar dos
tempos difíceis que se vive na educação, com o governo federal bloqueando
verbas e concursos para contratação de novos professores, há coisas
interessantes acontecendo dentro e fora dos muros da academia. Na visão dele,
nosso trabalho chamou atenção por trazer o hábito da leitura para dentro de um
grupo, e essa leitura não está presa à análise profunda do pensamento do autor,
mas carrega, além do autor, as vivências de cada participante do grupo.
“Gostei!”, nos disse o mediador.
Ao mesmo tempo em que recebíamos nossa aprovação para participação do XI
Congresso Internacional Artefatos da Cultura, foi feita uma entrevista com os
Coordenadores do Quilombo Literário que foi publicada na Revista Eletrônica
“CearáCriolo”, em 08 de setembro de 2020, com o título “Quilombo Literário:
o clube de leitura cearense focado em escritores negros”.
Durante a entrevista, além de se falar como o grupo foi criado, quais os
objetivos, nos foi perguntado, como forma de provocação, se a temática negra
vende, se tem mercado. Falou-se na entrevista “que há muitas barreiras para a
temática negra, com editoras afirmando que esse tipo de história não vende. Então,
a valorização do autor negro deve ser feita por ele mesmo, produzindo e
editando seus textos por conta e risco!”. E este sempre foi o caminho dos
negros em todas as áreas: se virar como conseguisse!
Uma das sementes que o nosso grupo pretende deixar plantada bem fundo na
mente das pessoas é que o povo negro precisa se apoderar da palavra escrita,
porque isso permitirá que a história do negro seja contada a partir de outro
olhar: o olhar do negro!
Nosso sétimo encontro, em 17 de abril de 2021, ainda devendo o
quinto e sexto encontros não realizados devido à pandemia, foi para ler a obra “O
Torto Arado”, do autor Itamar Vieira Júnior. Nesse momento, ainda dentro da
pandemia, e como a pandemia não cedia, realizamos esse encontro online pela
plataforma 'Zoom Meet'. Foi um teste que fizemos, pois o forte do nosso grupo é o
encontro presencial, quando os participantes podem trocar abraços e interagir
mais intensamente entre si. A obra narra o dilaceramento de vidas. A definição
do título da obra “torto arado” remete a um arado torto, deformado, que
penetrava a terra de modo a deixá-la destruída e dilacerada, assim também
estava a vida dos personagens: trabalhavam as terras das grandes propriedades,
sem poderem plantar um pequeno pedaço para seu próprio sustento; maus tratos às
mulheres, violência doméstica; proibição de cultuarem suas tradições religiosas
e as identidades negras. É a reprodução hoje do colonialismo de ontem!
Devido a boa aceitação da plataforma 'Zoom Meet' pelo grupo, fizemos nosso
primeiro encontro, em 29 de maio de 2021, para discutirmos filmes,
já que durante a pandemia muitas pessoas estavam assistindo a filmes em casa.
Nosso primeiro filme foi um capítulo da série “O Meu Amor”, disponível
na Netflix.
O episódio trata da parceria de duas mulheres que se casam, constroem
uma família estendida, onde há filhos(as), netos(as), mostrando que há várias
formas de construir uma família. Com o passar do tempo, as duas mulheres foram realizando,
aos poucos, o sonho de construir uma casa para a família na favela da Rocinha,
no Rio de janeiro. Economizavam dinheiro para comprar o material, e a mão de
obra era realizada pelas duas mulheres. Nesse dia, conseguimos reunir quatro
pessoas para conversarmos sobre o episódio.
Em 10 de julho de 2021, trabalhamos nosso segundo filme pela
plataforma 'Zoom', foi “AmarElo – É Tudo para Ontem”, do rapper Emicida.
É sobre os bastidores de um show que aconteceu no Teatro Municipal de
São Paulo, onde, até então, o negro nunca teve oportunidade de entrar como
espectador, somente como trabalhador! Fala sobre o apagamento do negro que
construiu todas as grandes obras do país e nunca teve seu nome reverenciado; fala
de grandes atrizes negras, de músicos negros, de escritores negros, que nunca
tiveram seu nome em evidência, mas que sempre tiveram seus nomes apagados como
realizadores de obras culturais. O filme fala que em muitos momentos da
história do país o negro se levantou contra o Estado e contra o racismo, é preciso
que o Estado reconheça o protagonismo negro na sociedade! É preciso acabar com
o apagamento do negro na sociedade!
Em 19 de dezembro de 2021 [esta obra tinha sido cancelada devido à
pandemia, mas agora recuperamos sua leitura. É o nosso quinto encontro
que tinha sido adiado, devido à pandemia], na Casa de Cultura e Restaurante
Preta Simoa, nos reunimos para trabalharmos o livro “Um Defeito de Cor”,
da autora Ana Maria Gonçalves. Muitas etapas do período da escravidão no Brasil
são apresentadas, passando por uma apresentação minuciosa da vida dos
muçulmanos que vieram escravizados, até chegar na Revolta dos Malês, que acabou
sendo interditada por delações de pessoas infiltradas. Há uma boa descrição das
primeiras casas de cômodos que eram alugadas para negros alforriados, onde é
possível ver a formação dos primeiros embriões de favelas no Rio de Janeiro.
Na página 337, se encontra a definição de “defeito de cor”: “era o que
não permitia que pretos, pardos e mulatos exercessem qualquer cargo importante
na religião, no governo ou na política”. Definição que não mudou muito até
hoje!
No nosso oitavo encontro, em 21 de maio de 2022, trabalhamos a
obra “O Avesso da Pele”, do autor Jeferson Tenório. A obra narra uma
espécie de conversa / (re)encontro entre o pai e o narrador. São narradas
histórias de namoradas, amigos, professores, salas de aulas. É a
reconstrução de uma história de vida perdida, porque o narrador não viveu muito
com o pai durante a vida. O pai abandona a família enquanto o narrador é muito
jovem. A narração é a tentativa de reconstrução dos elos entre os dois e
acontece após a morte trágica do pai em uma abordagem policial. Nas págs 176 /
177, é narrada essa abordagem. Depois da abordagem policial, mais um
negro é morto acidentalmente!
No nosso nono encontro, em 22 de outubro de 2022, trabalhamos a
obra “Solitária”, da autora Eliane Alves Cruz. A obra narra aspectos
sobre a questão das empregadas domésticas. Muitos desses aspectos ligados à
negritude, já que maior parte delas, no Brasil, são negras. Muitos desses
aspectos válidos lá na escravidão ainda estão presentes na vida das empregadas
domésticas. Fez-se referência a casos recentes de resgate de empregadas
domésticas que ainda viviam em regimes análogos à escravidão.
Em 10 de dezembro de 2022, [esta obra tinha sido cancelada devido à
pandemia, mas agora recuperamos sua leitura]. É o nosso sexto encontro
que tinha sido adiado, devido à pandemia, trabalhamos a obra “O Olho Mais
Azul”, da autora Toni Morrison. A autora escreveu esta obra durante as
lutas por direitos civis nos EUA. Então, a obra reflete um pouco a luta dos
negros daquele momento, mas que estão presentes hoje ainda no dia a dia de
qualquer negro em qualquer canto do mundo. Basicamente, uma menina negra que
sofre ‘bullying’ na escola e na comunidade onde vive, percebe que, se ela
conseguisse ter olhos azuis, esses problemas acabariam, pois quem tem olhos
azuis não passa por tais problemas. Assim ela pensava. Por baixo dessa
situação, está toda a problemática do racismo e suas implicações na vida dos
negros. É sobre isso que a autora se debruça!
No nosso décimo encontro, em 17 de junho de 2023, trabalhamos a
obra “Sobrevidas” do autor Abdulrazak Gurnah. É autor
nascido na ilha de Zanzibar, então protetorado britânico, atualmente parte da
Tanzânia. A ideia da Coordenação do
Quilombo Literário ao indicar essa obra foi trazer uma narrativa em África. A
obra trata sobre os efeitos das guerras sobre corpos e mentes de pessoas
nativas de África, já que alemães e ingleses estiveram lá com a intensão de
colonizarem territórios africanos. Primeiro os alemães fazem guerras avançando
sobre os territórios africanos. Matando, destruindo prédios e vidas, cooptando
nativos para lutar a seu favor e contra nativos irmãos. Mais tarde os ingleses
também avançam sobre esses territórios onde os alemães já estavam
estabelecidos. Os ingleses derrotam os alemães e passam a administrar esses
territórios. Mais adiante, se percebe que os alemães tentaram a
recolonização daqueles territórios, ou seja, tentaram expulsar os
ingleses. Como resultado dessas guerras, temos territórios dizimados,
pessoas com problemas existenciais, doenças, famílias destroçadas. [na pág 320,
há a reflexão de um personagem que reflete bem a luta de nativos nas guerras
dos opressores, “não basta o seu pai e o seu tio terem tido a estupidez de
arriscar a vida na guerra desses orgulhosos?”].
No nosso décimo primeiro encontro, em 21 de outubro de 2023,
trabalhamos a obra “Salvar o Fogo”, do autor Itamar Vieira Júnior.