terça-feira, 13 de outubro de 2020

Texto publicado pela Revista CearaCriolo [Elevador de serviços]

O link abaixo é o do texto que o CearaCriolo publicou.

[copiando e colando o link, é possivel entrar na página do CearaCriolo e acompanhar a íntegra da postagem do texto, inclusive, é possivel deixar comentários lá!] 

Também é possível deixar comentários aqui no nosso blog. É lá embaixo! [comentários são sempre bem vindos!]

Segue o link da revista eletrônica! 

https://cearacriolo.com.br/novo/elevador-de-servicos/


ELEVADOR DE SERVIÇOS

   

Por Paulo Rodrigues
Analista político e social

Nos Pampas gaúchos, aquela enorme região do Rio Grande do Sul na divisa com o Uruguai e a Argentina, faz muito frio! No dia em que Irene completou 13 anos, a mãe foi falar com a patroa para que conseguisse um trabalho para a filha. Podia ser como ajudante na casa de qualquer pessoa conhecida da patroa. A situação estava muito difícil em casa. Irene estava crescendo e não podia ficar às tardes solta nas ruas do bairro. O jeito era encaminhá-la para um trabalho. O pai trabalhava na construção civil, mas ganhava pouco. Tinha baixa escolaridade e, por isso, não era valorizado. Tinha aprendido o ofício com o pai dele.

– Por que colocar a guria a trabalhar tão cedo, dona Marlene? Encaminhe ela para estudar, ter uma boa profissão. Quem sabe ela até possa lhe ajudar ao final da sua vida, argumentou Patrícia.

A vida do pobre nem sempre era tão certinha assim, Marlene pensava, enquanto sacolejava no ônibus de volta para o barraco onde vivia com Irene e João, marido trabalhador, que desde os nove anos trabalhava em obras com o pai. Aprendeu tudo sobre construção de edifícios na prática, mas nunca foi valorizado porque não aprendeu a ler nem a escrever. Aos negros, não sobra tempo para estudar. O aluguel e a fome parecem que estão sempre batendo à porta. Para dona Patrícia, é muito fácil dizer “ponha a guria a estudar”. Mas pagar de que jeito?

Absorta em seus pensamentos, tentando encontrar uma saída sobre o que fazer com Irene, Marlene nem percebeu que passou da parada onde deveria descer. Enquanto voltava a pé, depois de descer cinco ou seis paradas adiante, pensava que não era essa a vida que queria para Irene. Começar tão cedo como ajudante de empregada doméstica, ser tratada, como ela própria foi muitas vezes, igual a uma escrava, quando as patroas não permitiam que talheres, banheiros e toalhas fossem compartilhados. Dona Patrícia está certa! A guria tem que continuar os estudos. Ser alguém! Não reproduzir a história da mãe, dizia Marlene para si mesma!

– Aqui em casa tem muitos livros, Marlene! Diga para a Irene vir aqui escolher alguma coisa para ler. Ela pode levar para casa. É melhor do que deixar a guria correndo nas ruas. A senhora sabe como é essa juventude, arrematou Patrícia.

Essas conversas com Patrícia fizeram com que Marlene começasse a refletir sobre a vida não só da Irene como a dela, a do marido, as dos pais e a de amigos próximos. O marido era um bom homem, trabalhador, nunca deixou faltar o básico em casa, mas, às vezes, quando perdia o emprego, quer porque a obra terminou, quer porque houve má administração da obra, ficava em casa bebendo até aparecer outro emprego. E, quando demorava para aparecer, ele partia para agressões físicas em Marlene, como se ela fosse a culpada por serem negros e, assim, na hora das demissões, fossem os primeiros, mas nas admissões, os últimos. Era triste ver o marido nessa angústia, mas também não estava mais a fim de suportar as agressões físicas, e agora percebia que Irene talvez fosse por esse mesmo caminho, casando-se com um rapaz com estudo e trabalho precários, também ela própria com estudos e trabalhos precários. Não! Não queira isso para a filha! Irene vai estudar! É o estudo que dará ferramentas para que ela busque caminhos para escapar da pobreza e de trabalhos precários!

Apesar de ter estudado quase nada, Marlene tinha um refinado conhecimento sobre talheres, qual talher é utilizado para comer determinada comida; sobre comportamento à mesa, não falar de boca cheia, não falar ao mesmo tempo que outra pessoa; ao preparar um jantar que bebida acompanha a carne ou a massa. Tudo isso foi resultado de observações nas diversas casas de médicos, advogados e empresários que trabalhou. Mas em todas as casas ela sempre foi só a serviçal que era humilhada quando algo saía errado e, quando dava certo, a patroa é quem era cumprimentada. Dona Patrícia foi a primeira que se interessou em conversar sobre o futuro, dizendo que o futuro pode ser diferente: o dela, Marlene; o da Irene e o dela própria, Patrícia!

Patrícia é uma antropóloga branca que nasceu com tudo pronto na vida. Era só seguir o curso já traçado por outras pessoas. Em criança, fez balé, natação, canto e idiomas. Quando chegou na adolescência, idade que Irene tem hoje, já tinha uma vasta rede social formada. Era só começar a ler os clássicos da literatura e entrar para a universidade. Tão certo quanto o correr de um rio!

– Marlene, a senhora acha que eu concordo que alguém seja retirado de seu país, de seu convívio, e seja enviado para trabalhar de graça em outro país, para enriquecimento de outras pessoas? Temos uma dívida enorme com todos os negros e seus descendentes que foram jogados nessa situação. O mínimo que podemos fazer é o que empresas estão propondo atualmente: abertura de vagas nos altos escalões só para negros. É uma forma de abrir brechas para que haja real diversificação de pensamentos nas decisões que as empresas vierem a tomar, dizia Patrícia, numa tarde chuvosa, lá nos Pampas, quando as duas se sentaram para trocar ideias.

Depois dessas conversas com Patrícia, Marlene passou a incentivar Irene a ler. Era a única herança que poderia deixar para a guria. Não tinha como pagar aulas de balé, tênis ou natação, mas tinha como conseguir livros emprestados com dona Patrícia. Marlene conseguiu se aproximar de Irene repassando as histórias sobre negros que ouvia de Patrícia. Eram histórias de sofrimento durante a escravidão, muito trabalho pesado e, ao final da jornada de trabalho, muitas vezes, ainda servir ao Senhor. Mas também havia as histórias de homens e mulheres valentes, verdadeiros heróis negros, que muitas vezes conseguiam liderar grupos em fuga, rumo a uma terra livre e prometida que muitos chamavam de quilombos. Lá, nesses quilombos, viviam por sua conta e risco, porém, podiam plantar sua própria verdura para consumo de todos e as crianças não precisavam mais trabalhar desde muito cedo. Iam brincar e estudar, aprender os costumes e as religiões africanas. Irene passou a esperar ansiosa a hora em que a mãe voltava para casa. Assim, as duas podiam conversar alegremente sobre a saga dos negros na diáspora.

Ontem, a construtora onde o pai da Irene trabalha entregou oficialmente o prédio aos compradores. João foi homenageado como funcionário padrão, aquele que não teve nenhuma falta, não desperdiçou material, não teve advertências, enfim, foi um exemplo para todos. Quando mãe e filha chegavam para participar das homenagens, ouviram uma voz cujo conteúdo é conhecido dos negros da diáspora:

– O elevador de serviços é aquele lá no fundo!

Marlene não se deu por vencida, respondendo prontamente:

– O meu é este aqui mesmo! É que comprei um apartamento recentemente. Estou meio perdida neste prédio!

E ficou olhando firmemente para a moderna Sinhá, aquela que ainda não admite andar no mesmo elevador com uma negra!

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Apresentação no XI Congresso Internacional Artefatos da Cultura Negra


Os Coordenadores do Quilombo Literário, no dia 02de outubro de 2020, apresentaram as atividades do Quilombo em seminário virtual ocorrido na URCA [Universidade Regional do Cariri - CE]. Seguem as apresentações: Primeiro falou o Coordenador, Paulo Rodrigues; na sequência, o Vice Coordenador, Paulo Garcia.


XI Congresso Internacional Artefatos da cultura negra

Experiências de um Quilombo Literário em Fortaleza/CE: Literatura negra, narrativas e afetos

Obrigado a todos e todas por participarem da nossa apresentação.

Somos um grupo de leituras. O nome do grupo é Quilombo Literário.

Sou Paulo Rodrigues, coordenador do grupo, e Paulo Garcia é o vice coordenador.

O Quilombo Literário é formado por professores, estudantes e por pessoas de todas as outras profissões. Enviamos convite para cerca de 25 pessoas, mas efetivamente comparecem cerca de 8 pessoas por encontro. A única exigência é que se interessem pela questão negra.

A dinâmica do grupo é a de conversa de roda, onde todos podem falar sobre as impressões que tiveram ao ler a obra indicada. Não há um ponto de vista mais correto que outro. Partimos do princípio de que sempre podemos aprender alguma coisa com os outros.

Nossos encontros são semestrais. Sempre aos sábados à tarde. Para participar do grupo é preciso receber convite formal da coordenação.

O Quilombo Literário tem a pretensão de estimular o gosto pela leitura de autores negros, além de dar subsídios para que seus integrantes melhorem sua capacidade de apresentar ideias sobre este tema para os públicos onde atuam. Também estimulá-los a que escrevam textos para publicação em todas as mídias disponíveis.

Nosso primeiro encontro foi em junho de 2018, trabalhando a obra do Lázaro Ramos “Na Minha Pele”.

Depois trabalhamos as seguintes obras:

Em 15 de dezembro de 2018 – “Olhos D’Água”, da Conceição Evaristo;

Em 25 de maio de 2019 – “Eu Sei Por Que o Pássaro canta na Gaiola”, da Maya Angelou;

Em 19 de outubro de 2019 – “Não Vou Mais Lavar os Pratos”, da Cristiane Sobral.

Já fizemos quatro encontros presenciais, onde tivemos muitas trocas de informações e a chance de compartilhar narrativas de memórias de infância, ou de algum outro fato acontecido em algum momento da vida. Este é um espaço onde negros se encontram pessoalmente para conversarem, a partir da leitura do livro, sobre assuntos que em outros espaços não permeia livremente a questão negra. Também é um lugar onde amizades são expandidas.

A pandemia da Covid-19 fez com adiássemos o quinto encontro, que estava previsto para abril deste ano, onde trabalharíamos a obra “Um Defeito de Cor”, da autora Ana Maria Gonçalves. Indicamos para leitura para o segundo semestre, “O Olho Mais Azul” da autora Toni Morrison.

Convidamos a todos e todas que nos acompanhem pelo nosso blog: http://quilomboliterario.blogspot.com

Obrigado!

A Coordenação do

Quilombo Literário




















É importante destacar que as vivências no Quilombo Literário têm permitido a emersão de narrativas que muitas vezes são atravessadas por questões inseridas no campo das relações étnico-raciais e que evidenciam os impactos e as consequências do racismo no cotidiano dos seus integrantes. Para além das situações dolorosas, o Quilombo literário também se configura como um espaço que privilegia a troca e o fortalecimento de afetos.

Por fim, gostaria de finalizar a minha fala e estimular algumas reflexões com um poema de Cristiane Sobral, do livro Não vou mais lavar os pratos. O poema se chama Faveiros:

Quiseram transformar a favela num campo de
concentração
Num genocídio eletrizado pelo choro das mães
Numa opera do desespero

Quiseram exterminar essa gente de pele preta
Que continua resistindo
Subindo e descendo o morro

Gente valente que já cruzou tantos mares
Que calça as sandálias da valentia
Pisa as serpentes do mundo mau

Quiseram acabar com o descanso dessa gente
Que segue olhando a vista da cidade maravilhosa
Enxerga de um ponto privilegiado, esbanja outro
tipo de visão

Quiseram transformar a favela num campo de
concentração
Conseguiram uma concentração de beleza, de coragem, de
coragem
Um povo que vira a cara pro rancor e segue adiante

Quiseram transformar a favela num campo de
concentração
Em vão
É melhor dar do que receber.