terça-feira, 24 de outubro de 2023

Quilombo Literário: um grupo de leituras! - em 24out23 [narrativa de atividades do grupo]

 

O Quilombo Literário: um grupo de leituras!

Paulo Luiz Rodrigues

Inicialmente, este texto foi escrito durante a pandemia, em janeiro de 2021, para publicação nas páginas da Revista Africanidades. Não foi concluído a tempo.

A ideia era escrever sobre os livros lidos pelo grupo até aquele momento e sobre outras atividades que participamos, além de falar um pouco sobre o nosso grupo.

Agora, em setembro de 2023, retomamos a escrita desse texto, acrescentando atividades realizadas a partir da pandemia.

O Quilombo Literário é um grupo de leituras, cujo coordenador é Paulo Rodrigues, gaúcho, da cidade de Porto Alegre - RS, e está em Fortaleza a cerca de 10 anos; e Paulo Garcia, o vice coordenador, paulista, da cidade de Barretos - SP, e está em Fortaleza a cerca de 8 anos.

Depois de muitas conversas por e-mail, formatamos o Quilombo Literário e convidamos algumas pessoas para o nosso primeiro encontro, onde trabalhamos a obra “Na Minha Pele” do autor Lázaro Ramos, no dia 09 de junho de 2018.

O primeiro convite informava, logo nas primeiras linhas, que era pessoal e intransferível, e foi elaborado de forma a explicar ao convidado quais eram os objetivos do grupo que se formava: o Quilombo Literário pretende estimular entre os participantes o gosto pela leitura de livros de autores negros; melhorar a capacidade de interpretar, discutir e apresentar as ideias; aprimorar a escrita de textos voltados à questão negra. Para participar do grupo é preciso receber convite via e-mail, enviado pela coordenação.

Hoje isso mudou um pouco: criamos um grupo no WhatsApp e os convites são disponibilizados nessa plataforma. Mas os objetivos permanecem os mesmos. Alguns colegas que participavam inicialmente do grupo optaram por não se cadastrarem no grupo de WhatsApp, então não têm mais recebido as informações sobre atividades do Quilombo!

Durante a nossa apresentação no XI Congresso Internacional Artefatos da Cultura, uma das coisas que chamou a atenção do mediador foi o fato de que trazíamos a leitura para o centro da comunidade negra da diáspora, pois, dizia o mediador, uma das formas que o colonizador encontrou para subjugar os negros escravizados foi negar a eles a leitura e a escrita. E agora, continuava o mediador, aparece um grupo, de fora dos meios acadêmicos, e se propõe estimular a leitura de autores negros e aprimorar a escrita de pessoas negras.

Desde o início de nossas conversas para a formação do grupo, estas eram as principais preocupações: fazer com que as pessoas conversassem livres e soltas sobre o seu entendimento da leitura feita, não havendo o certo ou o errado, simplesmente a pessoa sentiu dessa forma a leitura; melhorar o entendimento das palavras lidas, aqui pensávamos na melhora argumentativa das pessoas; e a escrita, pois acreditamos que, ao ler, a pessoa passa a escrever com mais qualidade; além de trazermos, e isso  sempre foi uma preocupação latente, livros de autores negros de várias nacionalidades, para que começássemos a conhecer essa literatura um tanto desconhecida aqui no nosso país.

Conseguimos levar cerca de 8 pessoas ao primeiro encontro, de um total de 17 convidadas via e-mail. Ainda tivemos uma participante de Araraquara - SP que enviou sua contribuição por e-mail, a qual lemos durante o encontro. Uma das conclusões a que chegamos foi que Lázaro Ramos analisa de forma elegante e simples temas complexos, o que torna a leitura gostosa e tranquila. Observamos também que o autor trata: das vantagens que a branquitude tem em relação a negritude na sociedade; relacionamentos inter-raciais; cotas; criação de filhos negros num mundo de brancos; mídia; invisibilidade do negro; autoestima; identidade negra; entre outros temas. Destacamos, ainda, nas páginas 82 e 83 do livro, ideia discutida pelo autor de que a mídia tem um poder tão forte que mudanças na mídia correspondem a mudanças na sociedade. Este pensamento do autor tem conexão bem forte com a pensadora negra Ângela Davis, que disse: “quando a mulher negra se move, toda a sociedade se movimenta!”.

Nosso grupo não tem a pretensão de discutir, como dizia o mediador no XI Congresso, a raiz do pensamento dos autores, mas de trazer à luz ideias relevantes apresentadas por eles e, então, interligá-las com o dia a dia, com a realidade de cada leitor.

Enquanto criávamos o Quilombo Literário, nos perguntávamos o que seria mais importante para os nossos leitores: o local, os livros, o acesso ao prédio ou a beleza interior prédio.  Esta era uma questão importante para nós porque não tínhamos local para nos reunirmos. Concluímos que o mais importante, num processo como o que estávamos iniciando, era o leitor. Ele é o elo mais importante num processo de incentivo à leitura. Se ele se encantar com a leitura, irá incentivar para que o projeto dê passos maiores, irá propor novos autores para leitura. Concluímos que ler boas obras é ajudar o cérebro a criar conexões, desenvolvendo-o. Ler é se adaptar a olhar os fatos por outros ângulos, é viajar sem sair do lugar, é expandir o vocabulário e a capacidade de escrita, é melhorar a dicção e a oratória.

A dinâmica utilizada no grupo é a de que cada convidado leia a obra indicada e, no dia do encontro, que é um por semestre, cada participante possa abordar os aspectos que mais lhe chamaram atenção durante a leitura e, muitas vezes, partindo de algum fato narrado pelo autor, o participante junte memórias de algum momento de sua própria vida, e as compartilhe com o grupo. Acreditamos que isso é um grande diferencial de nosso grupo, pois conseguimos juntar ficção e realidade nas nossas narrativas. Quando o Lázaro Ramos narrava que a mãe dele foi empregada doméstica e que a patroa dela não permitia que ela almoçasse junto à mesa, nesse momento, o grupo se deu conta de que quase todos os participantes também tiveram vários parentes que tinham a mesma profissão: empregada doméstica! Aqui se falou das humilhações que estas profissionais sofrem nos ambientes em que exercem suas atividades, e das limitações que sofrem quanto a horários de trabalho, dias de folga, e abusos de toda ordem. Quando alguém cita que alguma situação da narrativa do autor foi boa ou ruim, outro dos participantes, partindo dessa situação levantada, pode trazer alguma memória vivida! E isto é instantâneo! Este é um momento em que se pode dizer que a obra entrou em conexão com o leitor, fazendo aflorar situações que estavam guardadas! Aqui reside a força do Quilombo Literário: fundir ficção com realidade!

Como estamos trabalhando com memória vivida, não há por que discutir se a interpretação que algum participante dê à narrativa do autor esteja certa ou errada. Não há um ponto de vista mais correto que outro. Partimos do princípio de que sempre podemos aprender alguma coisa com os outros! Muitas vezes, outro leitor pode nos alertar para algum aspecto da narrativa do autor que passamos despercebidos. Nosso grupo é formado por pessoas de várias profissões: estudantes e professores em sua maioria, mas também comerciantes, empregadas domésticas, e profissionais liberais. Temos o que chamamos de diversidade de saberes! Então, o que é visível para uns, não o é para outros!

No nosso segundo encontro, no segundo semestre de 2018, dia 15 de dezembro, trabalhamos a obra “Olhos D’Água” da autora Conceição Evaristo. É uma obra com histórias fortes, onde a autora expõe a vida de personagens, em sua maioria negros, que vivem nas favelas, país afora! A autora apresenta textos curtos onde mostra a fragilidade da vida. São denúncias e celebrações da vida! Afirmações e negações! Mas acima de tudo, mostra a capacidade da mulher negra de reinventar nesse ambiente para sobrevivência própria e dos seus familiares. Em muitos textos, a autora mostra as várias formas da mulher negra se apresentar ao mundo. Vítima de contextos desfavoráveis, baixa escolaridade e, por consequência, precariedade no emprego! Um retrato de vida que muitos sabem que existe, mas poucos querem encontrar uma solução! 

Muitas pessoas do nosso grupo, ao avaliarem a obra de Conceição Evaristo, disseram que não conseguiram ler mais de um conto por vez, tamanho foi o impacto das histórias narradas. São textos fortes sobre mulheres negras de periferia, onde a autora convida o leitor(a) a escrever junto o texto, isto é, as ideias não são descritas em sua íntegra, mas dão a sugerir, ficam no ar, deixando que o leitor construa junto o que está sendo narrado. São textos realistas e crus. Outra discussão no grupo foi que talvez, por seus textos realistas e crus, falando de uma realidade nua e crua, a autora tenha perdido muitos votos para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras na última eleição. Fazer o quê? Melhor ser ela mesma a escrever para ganhar votos! 

Em todos os nossos encontros há intervalo para o lanche. Preparamos uma mesa separada da mesa de discussão, onde colocamos todas as contribuições. Solicitamos que cada participante leve alguma contribuição para o lanche que será servido a todos os presentes. Essa contribuição poderá ser na forma de bolo, bolacha, refrigerante, suco, ou uma fruta. Entendemos que a importância do lanche é mostrar aos presentes que houve uma preparação para recepcioná-los, para que se sintam bem, além de ser um momento de confraternização entre os participantes!

Durante o intervalo, aproveitamos para conhecer melhor os participantes: onde estuda, trabalha, de que bairro vem. São esses contatos que vão criando laços entre o grupo. Muitas vezes, se conversa sobre algum fato relevante aparecido na mídia nos dias anteriores sobre a questão negra. Também se conversa sobre peças de teatro que vão estrear na cidade ou em alguma capital do país. Livros que foram lançados ou estão em pré-lançamento. Esse é um momento em que muitas informações sobre o que está acontecendo em relação à questão negra são repassadas.

Em nosso terceiro encontro, no primeiro semestre de 2019, dia 15 de junho, trabalhamos a obra “Eu Sei Por Que o Pássaro Canta na Gaiola”, da autora Maya Angelou. A autora narra fragmentos de histórias ocorridas em algumas cidades dos Estados Unidos por onde os personagens transitam. Muitos desses fragmentos do livro nos puxam para a vida real. Logo no início da narração, a autora descreve toda uma situação de estupro infantil. Percebeu-se que depois de descoberto o ato ilícito todas as desculpas apresentadas para justificar o ato são semelhantes às apresentadas na vida real. Este foi um momento em que o grupo não pôde deixar de comparar ficção e realidade, além de se revoltar com esses casos!

Outro fragmento que levou o grupo a comparar ficção e realidade foi quando a autora narra a dúvida que a menina, que havia sido estuprada anos antes, tem ao analisar o seu corpo: percebe que é desprovida de curvas maiores, o que a levou a pensar que era lésbica. Conversando com a mãe sobre as transformações do corpo de menina, não recebeu resposta que lhe tirasse a dúvida.  A permanência dessa dúvida causou baixa autoestima na personagem.

O livro analisado no terceiro encontro abriu muitas frentes para debates: além da dúvida de ser ou não lésbica, apresentava uma menina criada no sul dos Estados Unidos, sofrendo os efeitos do machismo e da violência sexual. Todos esses fatos, da ficção e da realidade, levaram o grupo a concluir que o “modus operandi” é o mesmo tanto lá quanto aqui, o que levou o grupo a acreditar que machismo, violência sexual, e os derivados da escravidão são os mesmos, tanto lá quanto aqui!

O livro ainda mostra fragmentos do caso de um dentista que tem por princípio não atender negros; a questão do primeiro emprego da adolescente que demora para dar certo porque as empresas dificultam de todas as formas a contração de negros. Quando o grupo compara esses fragmentos da ficção com a vida real, constata que muitas empresas dificultam a contratação de negros, mas, em tempos de crise, os negros são os primeiros a serem demitidos! Na realidade, há dificuldade para ser admitido, mas há facilidade para ser demitido! Seria isso o tal racismo estrutural? 

Nosso terceiro encontro foi pesado porque tratou de assuntos pesados e reais. Ao final do encontro, se destacou, tal qual o mediador do XI Congresso Internacional Artefatos da Cultura também o fez, a importância de espaços de discussão sobre a questão negra igual a esse que o Quilombo Literário disponibiliza. Destacou-se que, muitas vezes, os negros enfrentam lutas variadas sozinhos, não tendo o apoio de outros negros para dividirem o fardo pesado do racismo cotidiano que se abate, ora velado, ora explícito, sobre eles. Precisamos que mais pessoas participem desses encontros e que tragam suas experiências de vida para compartilhar com os presentes! 

O grupo concluiu a análise da obra perguntando o porquê do título do livro. Talvez a autora quisesse dar a ideia de libertação, pois, os vários fragmentos discutidos na narração levam à liberdade: liberdade de pensamento, de agir, de entendimento dos fatos, consciência antirracista, vontade de escrever e de esperança em dias melhores. Então, o pássaro, mesmo preso na gaiola, canta por acreditar que a liberdade ainda virá um dia!

Em todos os nossos encontros há uma preocupação com o bem-estar de todos os participantes. Cuidamos para iniciar e terminar no horário, de modo a não prejudicar o retorno dos que moram mais distante. Antes do início do encontro, preparamos todos os detalhes da sala, para que os participantes cheguem e percebam que eles são importantes, que alguém se preocupou com o bem-estar deles. Nosso grupo distribui afetividades, por isso encontros presenciais são tão importantes para nós! E ainda há o registro fotográfico de vários momentos do encontro. Procuramos fazer o registro escrito e fotográfico de cada encontro, de modo que o futuro exponha, a quem se interessar por esse assunto, a nossa tentativa de contribuir com a real emancipação do negro! 

Em nosso quarto encontro, no segundo semestre de 2019, dia 19 de outubro, trabalhamos a obra “Não Vou Mais Lavar os Pratos” da autora Cristiane Sobral. Esse encontro iniciou com a fala do Coordenador lembrando as regras e objetivos do grupo: proporcionar leitura e análise de obras variadas sobre a questão negra; a importância da escrita; e que não existe opinião certa ou errada ao analisar uma obra.

A obra escolhida para análise traz poemas curtos, então, optou-se por deixar que cada participante escolhesse um poema e fizesse a leitura e, após, quem quisesse fazer algum comentário estava liberado para fazê-lo. Em muitos poemas, a autora mesclava o ontem e o hoje. E nos comentários, após a leitura dos poemas, se percebia que os problemas do negro de ontem continuam, com outra roupagem, os mesmos do negro de hoje. Um colega pediu para ler o poema “Faveiros”, após a leitura se fez comparações entre o poema da autora e a vida real, lembrando de balas perdidas e da juventude negra que está sendo abatida nas periferias. 

A certa altura do nosso quarto encontro, começamos a perceber que muitas histórias narradas nos poemas tinham relação com temas já tratados em obras analisadas anteriormente por nós. A interdição do homem e mulher negros na sociedade aparece em todas as obras analisadas. O que nos obriga a fazermos a conexão entre elas. 

Concluímos o quarto encontro, lendo em conjunto o poema título da obra “Não Vou Mais Lavar os Pratos”. Após a leitura, se comentou que a sociedade ainda cobra muito da mulher a realização do trabalho doméstico. Muitas vezes, mesmo da mulher com atividade intelectual se cobra a limpeza e organização da casa, fazendo com que ela, às vezes, tenha dúvidas se fará primeiro o trabalho intelectual ou o doméstico. Esta situação é tão cruel, que faz com que algumas mulheres pensem “o que alguém irá pensar, se chegar à minha casa e encontrar a casa bagunçada?”.  O grupo entendeu que este poema era o grito de liberdade da mulher!

Nosso quinto encontro estava previsto para o primeiro semestre de 2020, dia 04 de abril, para trabalharmos a obra “Um Defeito de Cor”, da autora Ana Maria Gonçalves, porém, devido à pandemia, foi transferido sem data para a sua realização. Quando chegou o segundo semestre, e só para cumprirmos a realização de indicação para leitura de um livro por semestre, indicamos a obra “O Olho Mais Azul” da autora Toni Morrison, também sem data para o encontro, pois a pandemia não mostrava sinais de recuo! Ficamos, então, com dois livros indicados para leitura esperando o fim da pandemia, aguardando para nos encontrarmos pessoalmente para discutirmos as obras.

Na obra “Um Defeito de Cor”, temos a história do negro narrada pelo olhar do negro. Então, é outro modo de narrativa da revolta dos malês, em Salvador; se conhece melhor as pensões insalubres do início da formação da cidade do Rio de Janeiro, onde os negros libertos viviam, depois de trabalharem nas calçadas da cidade vendendo frutas, verduras, pães e doces, além de pequenos objetos. E nessa nova narrativa feita pelo próprio negro se percebe que o negro consegue sim ser um empreendedor!

Na obra “O Olho Mais Azul”, temos a narrativa do esmagamento da autoestima de uma menina negra norte-americana. Uma menina que, ao ser ridicularizada e rejeitada pelas outras coleguinhas na escola e perceber que tudo de bom e belo estava reservado para as colegas de olhos azuis, decide que quer ter olhos azuis também! Na trama há também discussão sobre raça, violência doméstica e classe social. 

Nos nossos encontros, além dos livros escolhidos para trabalharmos, também ressaltamos a importância que grupos como o nosso têm no empoderamento de negros e negras. Na maior parte das vezes, o racismo é velado, escamoteado, então, é dentro de grupos como este que estamos construindo que podemos nos fortalecer e, assim, levar adiante a luta antirracista! Em verdade, nesta luta antirracista, nosso grupo pretende alcançar os corações e as mentes das pessoas, para transformá-los! 

Durante a pandemia, submetemos apresentação de trabalho no XI Congresso Internacional Artefatos da Cultura, com apresentação virtual, na URCA [Universidade Regional do Cariri – CE]. Nossa proposta, “Experiência de Um Quilombo Literário em Fortaleza – CE: Literatura Negra e Afetos”, foi aceita e foi apresentada no dia 02 de outubro de 2020.

Nossa apresentação se deu em dois momentos: inicialmente, o Coordenador explicou os objetivos do nosso grupo, Quilombo Literário; que obras já havíamos trabalhado; destacou, ainda, que o Quilombo Literário é um espaço onde negros se encontram presencialmente para conversarem a partir da leitura do livro indicado, e sobre assuntos que, em outros espaços, não permeiam livremente temas sobre a questão negra. Também é um lugar onde amizades são fortalecidas!

Na sequência, o Vice Coordenador apresentou em “Power Point” várias fotografias dos nossos encontros, fez comentários sobre as fotografias, e afirmou que “é importante destacar que as vivências no Quilombo Literário têm permitido a emersão de narrativas que muitas vezes são atravessadas por questões inseridas no campo das relações etnicorraciais e que evidenciam os impactos e as consequências do racismo no cotidiano dos seus integrantes. Para além das situações dolorosas, o Quilombo Literário também se configura como um espaço que privilegia a troca e o fortalecimento de afetos!”. 

Depois da apresentação, durante a abertura para perguntas, explicávamos que as fotografias foram escolhidas justamente para lembrar e marcar nossas trocas de conhecimento e de afeto. Trocas que ao longo dos tempos foram negadas, escamoteadas e, muitas vezes, apagadas do povo negro!

A apresentação do nosso trabalho chamou a atenção do mediador por ser o único com objeto de estudo fora da academia. Todos os outros trabalhos que se apresentaram (nosso grupo temático reuniu onze grupos com trabalhos propostos sobre literatura), eram de estudantes universitários apresentando pedaços de suas teses para mestrado ou doutorado! O mediador ficou encantado que, apesar dos tempos difíceis que se vive na educação, com o governo federal bloqueando verbas e concursos para contratação de novos professores, há coisas interessantes acontecendo dentro e fora dos muros da academia. Na visão dele, nosso trabalho chamou atenção por trazer o hábito da leitura para dentro de um grupo, e essa leitura não está presa à análise profunda do pensamento do autor, mas carrega, além do autor, as vivências de cada participante do grupo. “Gostei!”, nos disse o mediador. 

Ao mesmo tempo em que recebíamos nossa aprovação para participação do XI Congresso Internacional Artefatos da Cultura, foi feita uma entrevista com os Coordenadores do Quilombo Literário que foi publicada na Revista Eletrônica “CearáCriolo”, em 08 de setembro de 2020, com o título “Quilombo Literário: o clube de leitura cearense focado em escritores negros”. 

Durante a entrevista, além de se falar como o grupo foi criado, quais os objetivos, nos foi perguntado, como forma de provocação, se a temática negra vende, se tem mercado. Falou-se na entrevista “que há muitas barreiras para a temática negra, com editoras afirmando que esse tipo de história não vende. Então, a valorização do autor negro deve ser feita por ele mesmo, produzindo e editando seus textos por conta e risco!”. E este sempre foi o caminho dos negros em todas as áreas: se virar como conseguisse!

Uma das sementes que o nosso grupo pretende deixar plantada bem fundo na mente das pessoas é que o povo negro precisa se apoderar da palavra escrita, porque isso permitirá que a história do negro seja contada a partir de outro olhar: o olhar do negro! 

Nosso sétimo encontro, em 17 de abril de 2021, ainda devendo o quinto e sexto encontros não realizados devido à pandemia, foi para ler a obra “O Torto Arado”, do autor Itamar Vieira Júnior. Nesse momento, ainda dentro da pandemia, e como a pandemia não cedia, realizamos esse encontro online pela plataforma 'Zoom Meet'. Foi um teste que fizemos, pois o forte do nosso grupo é o encontro presencial, quando os participantes podem trocar abraços e interagir mais intensamente entre si. A obra narra o dilaceramento de vidas. A definição do título da obra “torto arado” remete a um arado torto, deformado, que penetrava a terra de modo a deixá-la destruída e dilacerada, assim também estava a vida dos personagens: trabalhavam as terras das grandes propriedades, sem poderem plantar um pequeno pedaço para seu próprio sustento; maus tratos às mulheres, violência doméstica; proibição de cultuarem suas tradições religiosas e as identidades negras. É a reprodução hoje do colonialismo de ontem! 

Devido a boa aceitação da plataforma 'Zoom Meet' pelo grupo, fizemos nosso primeiro encontro, em 29 de maio de 2021, para discutirmos filmes, já que durante a pandemia muitas pessoas estavam assistindo a filmes em casa. Nosso primeiro filme foi um capítulo da série “O Meu Amor”, disponível na Netflix. 

O episódio trata da parceria de duas mulheres que se casam, constroem uma família estendida, onde há filhos(as), netos(as), mostrando que há várias formas de construir uma família. Com o passar do tempo, as duas mulheres foram realizando, aos poucos, o sonho de construir uma casa para a família na favela da Rocinha, no Rio de janeiro. Economizavam dinheiro para comprar o material, e a mão de obra era realizada pelas duas mulheres. Nesse dia, conseguimos reunir quatro pessoas para conversarmos sobre o episódio.

Em 10 de julho de 2021, trabalhamos nosso segundo filme pela plataforma 'Zoom', foi “AmarElo – É Tudo para Ontem”, do rapper Emicida.

É sobre os bastidores de um show que aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo, onde, até então, o negro nunca teve oportunidade de entrar como espectador, somente como trabalhador! Fala sobre o apagamento do negro que construiu todas as grandes obras do país e nunca teve seu nome reverenciado; fala de grandes atrizes negras, de músicos negros, de escritores negros, que nunca tiveram seu nome em evidência, mas que sempre tiveram seus nomes apagados como realizadores de obras culturais. O filme fala que em muitos momentos da história do país o negro se levantou contra o Estado e contra o racismo, é preciso que o Estado reconheça o protagonismo negro na sociedade! É preciso acabar com o apagamento do negro na sociedade!

Em 19 de dezembro de 2021 [esta obra tinha sido cancelada devido à pandemia, mas agora recuperamos sua leitura. É o nosso quinto encontro que tinha sido adiado, devido à pandemia], na Casa de Cultura e Restaurante Preta Simoa, nos reunimos para trabalharmos o livro “Um Defeito de Cor”, da autora Ana Maria Gonçalves. Muitas etapas do período da escravidão no Brasil são apresentadas, passando por uma apresentação minuciosa da vida dos muçulmanos que vieram escravizados, até chegar na Revolta dos Malês, que acabou sendo interditada por delações de pessoas infiltradas. Há uma boa descrição das primeiras casas de cômodos que eram alugadas para negros alforriados, onde é possível ver a formação dos primeiros embriões de favelas no Rio de Janeiro.

Na página 337, se encontra a definição de “defeito de cor”: “era o que não permitia que pretos, pardos e mulatos exercessem qualquer cargo importante na religião, no governo ou na política”. Definição que não mudou muito até hoje!

No nosso oitavo encontro, em 21 de maio de 2022, trabalhamos a obra “O Avesso da Pele”, do autor Jeferson Tenório. A obra narra uma espécie de conversa / (re)encontro entre o pai e o narrador. São narradas histórias de namoradas, amigos, professores, salas de aulas. É a reconstrução de uma história de vida perdida, porque o narrador não viveu muito com o pai durante a vida. O pai abandona a família enquanto o narrador é muito jovem. A narração é a tentativa de reconstrução dos elos entre os dois e acontece após a morte trágica do pai em uma abordagem policial. Nas págs 176 / 177, é narrada essa abordagem. Depois da abordagem policial, mais um negro é morto acidentalmente!

No nosso nono encontro, em 22 de outubro de 2022, trabalhamos a obra “Solitária”, da autora Eliane Alves Cruz. A obra narra aspectos sobre a questão das empregadas domésticas. Muitos desses aspectos ligados à negritude, já que maior parte delas, no Brasil, são negras. Muitos desses aspectos válidos lá na escravidão ainda estão presentes na vida das empregadas domésticas. Fez-se referência a casos recentes de resgate de empregadas domésticas que ainda viviam em regimes análogos à escravidão.

Em 10 de dezembro de 2022, [esta obra tinha sido cancelada devido à pandemia, mas agora recuperamos sua leitura. É o nosso sexto encontro que tinha sido adiado, devido à pandemia], trabalhamos a obra “O Olho Mais Azul”, da autora Toni Morrison. A autora escreveu esta obra durante as lutas por direitos civis nos EUA. Então, a obra reflete um pouco a luta dos negros daquele momento, mas que estão presentes hoje ainda no dia a dia de qualquer negro em qualquer canto do mundo. Basicamente, uma menina negra que sofre ‘bullying’ na escola e na comunidade onde vive, percebe que, se ela conseguisse ter olhos azuis, esses problemas acabariam, pois quem tem olhos azuis não passa por tais problemas. Assim ela pensava. Por baixo dessa situação, está toda a problemática do racismo e suas implicações na vida dos negros. É sobre isso que a autora se debruça!

No nosso décimo encontro, em 17 de junho de 2023, trabalhamos a obra “Sobrevidas” do autor Abdulrazak Gurnah. É autor nascido na ilha de Zanzibar, então protetorado britânico, atualmente parte da Tanzânia.  A ideia da Coordenação do Quilombo Literário ao indicar essa obra foi trazer uma narrativa em África. A obra trata sobre os efeitos das guerras sobre corpos e mentes de pessoas nativas de África, já que alemães e ingleses estiveram lá com a intensão de colonizarem territórios africanos. Primeiro os alemães fazem guerras avançando sobre os territórios africanos. Matando, destruindo prédios e vidas, cooptando nativos para lutar a seu favor e contra nativos irmãos. Mais tarde os ingleses também avançam sobre esses territórios onde os alemães já estavam estabelecidos. Os ingleses derrotam os alemães e passam a administrar esses territórios. Mais adiante, se percebe que os alemães tentaram a recolonização daqueles territórios, ou seja, tentaram expulsar os ingleses. Como resultado dessas guerras, temos territórios dizimados, pessoas com problemas existenciais, doenças, famílias destroçadas. [na pág 320, há a reflexão de um personagem que reflete bem a luta de nativos nas guerras dos opressores, “não basta o seu pai e o seu tio terem tido a estupidez de arriscar a vida na guerra desses orgulhosos?”].

No nosso décimo primeiro encontro, em 21 de outubro de 2023, trabalhamos a obra “Salvar o Fogo”, do autor Itamar Vieira Júnior.

 


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